Paulo de Tarso, ou Cristianismo e Judaísmo
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Ninguém há que se ponha a estudar seriamente a história do cristianismo, sem deixar-se impressionar pela quase completa inexistência de documentos concernentes aquele cujo nome está intimamente ligado a esta grande religião mundial, a saber: Jesus Cristo. Não sabemos sobre ele, senão o que nos é falado nos evangelhos – vale dizer: praticamente nada; isto porque, se os mesmos são pródigos em relatar-lhes as passagens miraculosas, nada dizem que nos esclareça sobre sua pessoa e, sobretudo, sobre sua origem. Mas claro: consta, em um dos quatro evangelhos canônicos, uma longa genealogia, a qual parte de José e chega ao próprio… Adão! Mas sempre me perguntei: “qual seria o interesse numa tal genealogia, a de José, uma vez que nos é expressamente declarado que o mesmo nada tem que ver com o nascimento da criança?”. Em um dos muitos evangelhos ditos “apócrifos” – rejeitados pela Igreja -, a paternidade de Jesus é atribuída a um distinto e mui bravo soldado Romano, ao qual, em razão mesmo de sua bravura, usou-se aplicar o epíteto de “Pantera”. Esse evangelho é citado por Haekel em um de seus estudos sobre o Cristianismo das origens. Mesmo que aceitemos essa hipótese, ainda não nos foi resolvida a questão, uma vez que persiste a ignorância sobre quem teria sido Maria, sua mãe. Um dos evangelhos canônicos nos dá notícias de que a mesma seria filha de Joaquim e de Ana, a qual, no momento de seu nascimento, era já uma jovem senhora; em outras palavras: também Maria, por seu turno, teria tido um nascimento milagroso – ou teria sido simplesmente adotada por Ana. Tampouco sobre isso, nos é esclarecido.
Mas há algo mais perturbador. Descobriu-se recentemente registros de um importante convento da seita conhecida como Essênia, o qual situava-se há pouco mais de 30 quilômetros de Jerusalém. Estes registros abarcam um período que vai do início do primeiro século antes de Cristo, a meados do primeiro século da era corrente. Neles, setenta anos antes de Cristo, já há menção a um iniciado, um mestre espiritual – “Mestre da Justiça” -, cujo retorno importava aguardar. Entretanto, nestes mesmos relatos, não encontramos uma só palavra sobre a carreira extraordinária de Jesus, suas muitas curas miraculosas, seus ensinamentos junto a milhares de palestinos por longos três anos, ou ainda sobre sua entrada triunfante em Jerusalém – fatos tão brilhantemente registrados nos evangelhos canônicos -, nem sobre seu processo e crucificação (acompanhados, segundo os mesmos evangelhos, de eventos igualmente marcantes, como tremores de terra, o obscurecimento do céu por três horas em plena tarde, e mesmo o ter-se rasgado em dois, o “véu do tempo”); silêncio este que se deu entre homens extremosamente religiosos, entre os quais certamente tais ocorrências teriam interessado. Parece-nos, a partir desses “manuscritos do Mar Morto”, que, ou bem Jesus não produziu qualquer impressão sobre o espírito religioso de seu tempo, ávido que era, por sabedoria, e bem informado como parece ser o caso do monastério mencionado… ou bem que ele simplesmente jamais existiu! A despeito do quão perturbadora seja essa questão, convém que a mesma seja posta à análise do público, sobretudo do público cristão, em face das novas descobertas.
Concernente à Igreja cristã, entretanto, e ao cristianismo em geral, tomado este como um fenômeno histórico, e tendo ainda em vista o papel representado pelo mesmo no ocidente e no mundo todo, a questão colocada acima é bem menos relevante do que pode parecer à primeira vista. A bem da verdade, ainda que Jesus tenha existido e pregado, ao contrário do que nos têm sido ensinado, ele não é o verdadeiro fundador do Cristianismo (presente no mundo, tal como o conhecemos). Se Jesus viveu, o mesmo era um homem “acima de seu tempo”, cujo reino – como ele mesmo dissera a Pilatos, segundo os evangelhos – “não pertence a este mundo”; e toda sua atividade, e ensinamentos, tendiam a mostrar, a todos quantos este mundo não satisfazia, um caminho espiritual pelo qual se pode fugir e encontrar, em seu “paraíso interior”, em seu “reino de Deus” interior, o qual trazemos em nosso íntimo – Deus, mas em “espírito e em verdade”, o qual procuramos sem conhecer. Se viveu, Jesus jamais sequer sonhou em fundar uma organização temporal – ainda menos uma com funções políticas e financeiras, tais como a Igreja logo veio a se transformar. A política não o interessou. E, dada sua nenhuma reverência frente aos ricos, ele era um inimigo contumaz de se imiscuir questões financeiras nas práticas espirituais, o que levou certos cristão a dizer, corretamente ou não, que isso era prova de que, diferente dos ensinamentos das igrejas cristãs, o mesmo não possuía sangue judeu. O verdadeiro fundador do Cristianismo histórico, do cristianismo tal como o conhecido, e que exerceu e exerce ainda um importante papel no ocidente e mesmo no mundo, não foi nem Jesus, de quem nada sabemos, nem seu discípulo Pedro, um simples pescador Galileu, mas Paulo de Tarso, de quem sabemos ter sido um judeu de sangue, por formação e por convicção, o qual, e isso pesa ainda mais, era também um “cidadão Romano”, exatamente como muitos intelectuais judeus de hoje em dia, que são ao mesmo tempo cidadãos franceses, alemães, russos e americanos.
O Cristianismo histórico – o qual não se trata de uma obra inteiramente “acima do tempo”, mas em muitos aspectos, um obra “do tempo” – é a obra de Saulo, rebatizado Paulo, isto é, é a obra de um judeu, exatamente como viria a acontecer com o marxismo, dois mil anos depois. Examinemos a carreira de Paulo de Tarso mais de perto.
Saulo, dito Paulo, não era apenas um judeu – mais que isso: era um judeu a um só tempo ortodoxo e instruído; era um judeu imbuído de consciência de sua raça e do papel que seu “povo eleito” jogará entre as nações, em conformidade com as promessas de Yahvé. Ele era aluno de Gamaliel, um dos teólogos ortodoxos mais reputados de seu tempo, o qual pertencia à escola dos Fariseus; precisamente a mesma escola que, segundo os evangelhos, foi combatida de perto pelo profeta Jesus, posteriormente alçado à condição de Deus pela Igreja – Jesus esse que os combateu em razão de seu orgulho, de sua hipocrisia, de sua aparência afetada, e por colocar a letra da lei judaica acima de seu espírito – ou, ao menos, do que se cria ser seu espírito; não nos é dito que Saulo tinha, sobre esses temas, uma idéia diferente da de Jesus. Ademais do quê, e isso é realmente muito importante, Saulo é um Judeu instruído e cioso de sua condição, nascido e crescido fora da palestina, em uma vila da Ásia menor recentemente dominada por Roma, e que havia sido parte da Ásia menor sob domínio Helênico, a qual manteve suas características gerais: Tarso, onde o grego cumpria ainda o papel de “língua franca”, falada por todos, e onde o latim, por sua vez, começava a tornar-se igualmente familiar, e onde encontravam-se representantes de todo o oriente próximo. Dito de outro modo, ele era proveniente de um “ghetto” judaico, e possuía, ademais de uma sólida noção de sua tradição judaica, também uma proximidade com os “goyim” – não judeus -, cujo mundo conhecia de perto, o que viria a ser-lhe muito útil, futuramente. [Ele há de ter tido em mente, sem dúvida, como judeu, o serem próprios, os Goyim, para o domínio por parte do “povo eleito”]* Ele conhecia esse mundo bem melhor que a maioria dos judeus da palestina, de cujo seio surgiu o primeiro foco dessa nova fé, da qual Saulo viria a imprimir as características que reconhecemos nela até hoje.
Lemos nos “atos dos apóstolos” que, em princípio, houve uma raivosa perseguição à nova seita. Não teriam seus aderentes feito pouco caso das leis judaicas, no senso estrito da palavra? o homem apontado como chefe, o qual, dizem, ressuscitou de entre os mortos, esse Jesus, a quem Saulo jamais viu, não foi o primeiro a dar o exemplo de não observância do Shabbat, de negligência dos dias de jejum, e outras tantas transgressões inadmissíveis das regras de vida, das quais os judeus não poderiam jamais abandonar? Diz-se, inclusive, que um mistério, o qual não significa nada de bom, plana sobre a história de seu nascimento, a saber: que talvez ele não seja inteiramente judeu – quem sabe? Como Saulo não haveria de perseguir uma tal seita, sendo, como era, um judeu ortodoxo, aluno do grande Gamaliel? Ele tem mesmo de preservar do escândalo os observadores da lei. Saulo, que já havia dado prova de seu zelo ao estar presente ao apedrejamento de Estevão, um dos primeiros pregadores dessa seita perigosa, continuou a defender a lei e a tradição judaicas contra aqueles que considerava herege, até que veio a compreender, enfim, que havia um modo melhor – e bem melhor – de fazê-lo, precisamente do ponto de vista judaico. Essa compreensão deu-se no caminho para Damasco.
A história, tal como a Igreja cristã quer que nos seja contada, diz que Saulo teve uma visão inesperada de Jesus – a quem, repetimos, Saulo nunca conheceu como pessoa -, e que o mesmo Saulo ouviu a voz de Jesus, a lhe dizer: “Saulo, Saulo, por que me persegues?”, voz à qual Saulo não pode resistir. Ele teve, além disso, sua visão turvada por uma luz muito forte e se sentiu jogado à terra. Transportado à Damasco, sempre segundo os “atos dos apóstolos”, lá encontrou novamente um dos seguidores da seita a qual tinha combatido, homem que, após restabelecer-lhe a vista, lhe consagrou o batismo e o recebeu na comunidade cristã.
Escusado é que se diga, que este relato não pode ser tomado como verdadeiro, senão por aqueles que trazem consigo a fé cristã. Não têm, como de costume, em relatos deste gênero, qualquer valor histórico. Aqueles que, sem idéia preconcebida, procuram uma explicação plausível – verossimilhante, natural – sobre a maneira pela qual as coisas se passaram, não podem se conter. E a explicação, para ser plausível, deve nos prestar contas não somente da transformação de Saulo em Paulo – de defensor iracundo do judaísmo em fundador da Igreja Cristã, tal como a conhecemos – mas ainda da natureza, do conteúdo e da direção de sua atividade após sua conversão; da lógica interna de sua carreira, ou, em outras palavras: é preciso abarcar as ligações psicológicas mais ou menos conscientes entre seu passado anti-cristão e sua grande obra cristã. Toda conversão implica uma ligação entre o passado do convertido e o resto de sua vida, uma razão profunda; vale dizer: uma aspiração permanente do convertido, a qual o ato de conversão satisfaz; uma vontade, uma direção permanente de vida e de ação, à qual o ato de conversão é a expressão e o instrumento.
Ora, tendo em vista tudo quanto sabemos dele, e sobretudo o modo como seguiu sua carreira, não há outra vontade fundamental profunda, inseparável da personalidade de Paulo de Tarso a todos os estágios de sua vida, que possa nos fornecer uma explicação de seu “caminho de Damasco”, senão a vontade de servir ao velho ideal judaico de dominação espiritual, cujo complemente e corolário reside na dominação econômica. Saulo, um judeu ortodoxo, um judeu consciente, que combateu a nova seita tão logo a mesma mostrou-se ameaçadora para a ortodoxia judia, não podia ter renunciado à sua ortodoxia e transformar-se na alma e nos braços precisamente desta seita perigosíssima, senão depois de compreender que, manipulada por ele, transformada, adaptada às exigências do vasto mundo dos Goyim – dos gentios dos evangelhos -, interpretada a seu talante, seria possível fazer o que séculos mais tarde Nietzsche chamaria de “dar um sentido novo aos mistérios antigos”; e assim, ele poderia transformar essa seita pelos próximos séculos, senão para sempre, em um poderoso instrumento a favor da dominação espiritual por Israel; e esta seria a via pela qual se haveria de realizar a “missão” do povo judeu que era, segundo sua gente, a de reinar sobre os outros povos, e de lhes escravizar moralmente, de modo a tornar possível sua exploração econômica. E na medida em que cresce essa escravização moral, mais completa será a exploração econômica, a qual, por assim dizer, floresce. Este é o único preço aceitável a se pagar pelo ter repudiado a rigidez da velha e venerável Lei. Ou ainda, em bom português, La súbita conversão de Saulo no longo caminho de Damasco pode ser explicada de uma maneira natural apenas se admitirmos que ele repentinamente percebeu as possibilidades que o cristianismo nascente lhe ofereceria para alcançar a dominação moral dos outros povos a favor de seu povo, e que ele pensou – em um insight genial, diga-se de passagem -:”Como fui tolo em perseguir essa seita, ao invés de servir-me dela, em nosso benefício! Deixei-me prender à forma – aos detalhes pouco importantes – ao invés de lançar vistas ao essencial: o interesse do povo de Israel!”.
Toda a posterior carreira de Paulo é uma ilustração – diríamos mesmo, uma “prova”, na medida estrita em que fatos dessa natureza podem ser “provados” – dessa tomada de posição genial; ela ilustra a vitória do judeu inteligente, homem prático e diplomático (e quem diz “diplomático” em questões de convicção, diz também em “enganador”) sobre o judeu ortodoxo instruído, preocupado sobretudo com problemas de pureza ritual. A partir de sua conversão, Paulo se abandona ao “espírito”, e vai onde o mesmo lhe sugere, ou mesmo onde este lhe ordena ir, e pronuncia, em todas as circunstâncias, as palavras que o “espírito” lhe inspira. Ora, onde o “espírito” o ordena ir? À palestina, junto dos judeus que ainda abraçam os “erros” que ele acabou de abjurar publicamente, os quais parecem ser também os primeiros na fila do direito de receber sua nova revelação? De modo algum! Bem pelo contrário! É à Macedônia, assim como à Grécia e entre os gregos da Ásia menor, entre os gálatas, e mais tarde, entre os Romanos – em países arianos; em todo caso, em países não judeus – que o neófito se vai a pregar o dogma teológico do pecado original e da paz eterna por meio de Jesus crucificado, e o dogma moral da igualdade de todos os homens e de todos os povos; em Atenas, ele proclama que Deus criou “todas as nações, todos os povos de um só e mesmo sangue” (Atos dos apóstolos, capítulo 17, versículo 26). Os judeus mesmos, nada tinham a ganhar tomando para si essa negação das diferenças naturais entre as raças, mas isso mostrou-se algo bastante útil a se pregar e de se impor aos “Goyim”, de modo a destruir, nestes últimos, seus valores nacionais, os quais se mostraram, até então, razão de ser de sua força (ou antes, isso serviu para acelerar sua destruição – espiritual -, uma vez que esses povos já estavam sob a influência dos judeus “helênicos” de Alexandria, desde o IV século antes de Cristo). Sem dúvida que Paulo também pregou “nas sinagogas”, é dizer, aos judeus, aos quais apresentou a nova doutrina como sendo um cumprir-se das profecias e das expectativas messiânicas; sem dúvida disse aos filhos de seu povo, assim como aos “tementes a Deus” – aos semi-judeus, como Timóteo, e aos judeus já espalhados pelas cercanias do Mar Egeu, e mesmo de Roma – que o Cristo foi crucificado e que ressuscitou, e que ele não anuncia outro que não o messias. Na verdade, ele dá um novo sentido às profecias judaicas exatamente como emprestou um novo sentido aos mistério imorredouros da Grécia, do Egito, da Síria e da Ásia Menor: um sentido que atribui aos judeus um papel único, um lugar especial, uma importância única ao povo judeu na religião dos não-judeus! Para ele, tratava-se de assegurar à seu povo a dominação espiritual do porvir. Seu gênio – não propriamente religioso, mas político – consiste em ter compreendido como fazê-lo.
E, no entanto, não foi apenas no campo da doutrina que ele se mostrou de uma flexibilidade desconcertante: “Grego, entre gregos, e judeu entre os judeus”, como ele mesmo usou dizer. Ele tem um bom tino prático concernente ao necessário – e ao impossível. Ele, que foi tão apegado à ortodoxia judaica, foi o primeiro a se opor veementemente a toda imposição da Lei judaica aos convertidos cristãos vindos de raça não judia. Ele insistiu – contra Pedro e o grupo menos conciliatório dos primeiros cristãos de Jerusalém – sobre o fato de que o cristão de origem não judia não ter de fazer a circuncisão nem de seguir a dieta judia. Ele escreveu a seus novos fiéis – semi-judeus; semi-gregos; romanos de origem duvidosa; Levantinos de todos os portos do Mediterrâneo: a todo esse mundo sem raça, aos quais ele está em vias de fazer a intermediação entre seu povo aguerrido a sua tradição, e o vasto mundo a conquistar -, enfim, para estes, ele diz que não há distinção entre “puros” e “impuros”; que lhes é permitido comer de tudo (“tudo o que encontrardes no mercado”, diria ele, se vivesse entre nós). Certamente ele sabia que, sem essas concessões, o cristianismo não poderia conquistar o ocidente – e, por tanto, Israel tampouco poderia esperar conquistar o mundo, por intermédio desse mesmo ocidente convertido.
Pedro, por sua vez, que não era um judeu do “gueto”, e não conhecia nada das condições do mundo não-judaico, não desposava, ao menos num primeiro momento, as mesmas opiniões que Paulo. É também por isso que convém identificar na pessoa de Paulo, o verdadeiro fundador do Cristianismo histórico: o homem que fez dos ensinamentos puramente espirituais do profeta Jesus, a base de uma organização militante dentro do Tempo, cuja finalidade é, conscientemente, por parte deste apóstolo, obter a dominação de sua gente sobre um mundo moral decadente – e fisicamente bastardo; um mundo onde o amor mal compreendido dos homens conduziu à miscigenação indiscriminada das raças, e assim, à supressão de todo orgulho nacional – em uma palavra: à perversão “ampla, geral e irrestrita”.
São chegados os tempos dos “gentios” abrirem seus olhos a essa realidade, já duas vezes milenar; convém que se encare as causas de nossa combalida atualidade, e que se reaja conseqüentemente.
Escrito à Méadi (próximo do Cairo, Egito), em 18 de Junho de 1957.
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